sexta-feira, 26 de março de 2010

Um branco


UM BRANCO

Ronie Von Rosa Martins





Pasma

A caneta afasta o bico

do papel.

E a folha que se faz deserta

Faz-se falha.

A mão

Que o objeto prende

Na sua ânsia treme.

Angústia de não ser falha

E na folha cicatrizar o verbo

A beleza da nossa fala.



Silêncio!!!



Descansa lívida e pálida a folha enorme!

Treme a mão e a caneta dorme.

Neste momento;

Neste tormento que o ponteiro mostra.



E o grito e a noite...

E os passos que distante vão?



Minha mão repleta

De um profundo não.



domingo, 21 de março de 2010

Moby


MOBY


Ronie Von Rosa Martins





Abriu um olho-claridade, brilho, luz-piscou uma, duas-três, várias vezes ligou e desligou o mundo. O outro.

Aberta as janelas, fronteiras entre o sono e o despertar, talvez entre a morte e a vida, pensou... (ultimamente pensava demais.)

Precisava levantar- “levanta filho da puta, levanta vagabundo.” – ouvia os quase inaudíveis insultos que o cérebro – entidade funcionário público – gritava. O corpanzil velho gordo e suado lascivamente afundado qual Titanic ou Pequod em um mar de cobertas também velhas e também suadas.

Girou os olhos pelo quarto, como fazia sempre; examinava o local-cela-quarto-prisão... grades?

No chão entreaberto... Moby Dick – sonhara estar preso no mortal arpão de Ahab;

Baleia, Moby como era chamado – a baleia era branca; ele era a própria noite. ...o zunido... Sempre o zunido daquela miserável... Um dia a pegaria.

Barulho lá fora. Valia a pena sair? Na superfície o Pequod o espreitava. Sentia o seu suor, seu odor de negro fujão; de escravo. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quis cuspir no chão. Achou melhor não. Dane-se o Pessoa. Tão louco que seu duplo era dobrado. Louco de merda. “Pelo menos eu sei quem sou, sei o que faço: Eu sou........... faço.........”

Bobagens. A sombra do Pequod estava quase sobre ele. Piscou os olhos. Mergulhar mais fundo. O mar era seu território, seu universo.

A mulher gritava para que não esquecesse a chave... “A chave! A chave!” e ele em desespero se apalpava. Bolsos do casaco, da camisa, da calça... “A chave! A chave!” “Levante, levante” implorava o cérebro; mas o corpanzil sorria constrangido na sua incapacidade de produzir ação. “Desculpe... respondiam todos os músculos, todos os nervos-neurônios–veias tudo. Todo o organismo em sussurro, depois lamentos depois em berros gritavam-berravam-ganiam-gemiam-murmuravam.

Procurou pelo quarto – sempre o silêncio, abraço profundo; forte e sufocante como o da mãe “Não vá se sujar meu filho... não vá se sujar meu filho...” o perfume adocicado e enjoativo lhe invadindo as narinas e nauseando-o. A tentativa desesperada de fugir dos tentáculos maternos... “Não vá se sujar meu filho...”

Fuga!

Rua!

Corria livre o sorriso fácil riscado na face gordinha e rosada. “Brincar, brincar, brincar” lhe ordenava a alma infantil, e era a mesma alminha que se encolhia tal qual o corpo, assustado e humilhado quando os meninos da vizinhança o colocavam na roda e o chamavam de baleia, “Moby Dick!”, Moby Dick!”

Chorar?

Não. Quando o pai lhe encontrava chorando batia com violência no seu rosto “Home não chora bundão! Home não chora!” E ele, a baleia, engolia as golfadas de lágrimas em proporções desumanas.

Na escola era o centro das atenções; as meninas riam e chamavam-no de Bolo fofo, A baleia sempre fugindo das ameaças. Fundo mergulhava.

E o pai?

Ausência presente. Presente indiferença. Vazio. Poltrona vazia, garrafa vazia. Uma lembrança... Vaga lembrança...

A mãe?

O abraço tentacular tão indiferente quanto à indiferença paterna “não vá se sujar meu filho, não vá.....”

O arpão rasgando o mar. As lágrimas, as lembranças... Ahab. Vários Ahabs insanos em seu encalço.

Afundar...afundar. Cada vez mais afundar.

A mãe-perfume

Perfume-amante.

Chances de amor?

Sim, tivera a chance de ser normal. ( O que é ser normal?) Ela até que gostava do cetáceo, mas não tinha condições de suportar a pilhéria da marujada: “Não dá mais Moby, não dá mais.” “Por que fulana... por quê?

Por quê?

O coro da turba surgia em uníssono vociferando: “Gordo, Gordo!”

Nos ouvidos as mãos, tampões exatos na exatidão da dor.

Chorar?

Não, Moby jamais chorava – o pai não deixava – Moby só mergulhava. Sempre o mergulho. Fugia incessante do arpão, para o arpão...

Ar...

Pra que serve o ar se há a imensa e delirante dor; pra que ar se o arpão da infelicidade lhe atravessa as costas numa gargalhada horrenda.

A cama-mar- acamar- acalmar...

Dor!Dor!Dor!

Ardor e febre. Suor. O corpo se despede enorme. Abandono. Imensa nódoa escarlate que tinge a água e sufoca até Ahab.

Os olhos – longe a baleia, na superfície arrasta para o inferno o navio, a fúria e a intolerância.

Então chegaram calmos, quase sorriam – os carcereiros-enfermeiros-amigos-sombras-marujos...sonhos.

“O gordo foi pro saco.”

“É”

“Pois é.”

O cérebro ativa a última luz...

“Suicídio?”

“Desde que nasceu.” Sorriu o outro.

“É.”

Parados e abertos os olhos. A visão.

Ahab. Dentes arreganhados, toda a tripulação, todos os meninos, a mãe, o pai, a amante – o arpão.

O corpo. Corpanzil de graxa, baleia imensa negra-branco cetáceo. Morte.

Morte?

Sim, por que não, só mais um grande mergulho...

“Ta morto mesmo?”

“Não sei...”

O salto. O berro!

Joga-se! A gordura imensa o peso intenso sobre os olhos claros os olhos parvos, o pânico definido pela indefinível morte.

Sufocados-esmagados-triturados...

Apagada a fornalha fecha-se o livro os olhos fecham.

Mais um mergulho.

Encontrariam no outro dia dois enfermeiros esmagados pelo paciente do quarto 56.

A vida... e a morte também podem ser ridículas.

Não havia nenhum Ismael para escapar ao naufrágio.









Levantando

Levantando


Ronie Von Martins













Primeiro deveria me preocupar com o narrador. Escolher quem narra. A forma como se conta um fato. Isso tudo é muito importante. Mas pro diabo, o narrador sou eu mesmo. E olhem lá, não sou nenhum eu “poético”, sou apenas eu. Isso basta.

Poderia também, dos vários fatos importantes da minha vida, eleger um que tenha sido significativo, que tenha representado alguma coisa pra mim ou para alguém. Pro diabo também, minha vida não passa de ume grande mero. E vejam que esse mero que seria um simplório de um adjetivo eu o substantivo, solidifico em coisa vasta, maior do que a proporção que realmente possui. Se é que alguém consegue possuir o nada. É o contrário, penso eu, é este grande abstrato infernal que nos possui. Jonas na bocarra da baleia. A grande baleia é o nada. Eu sou Jonas. Não!!! Esse não é o meu nome, pelo amor de Deus, eu sou Eu, e maiúsculo por uma questão de egocentrismo, dada a insignificância que represento entre esse E e esse U final.

É isso aí, para aqueles que já perceberam o meu desatinado esforço em ser irônico, minhas mais sinceras desculpas, mesmo que não deposite muita fé em desculpas, visto sua função meramente ritual diante do fato já consumado. Sou, digamos um aprendiz de aprendiz, e me regozijo diante das sentenças que vou amontoando. Sou deus, e com minúsculas, para não ofender àqueles que se debruçam sobre as nuvens e sorriem da minha ousadia. Ousadia??? Que sofrível...

Ah, claro, não devo esquecer do título, Levantando, o gerúndio (isso foi antes dessa onda de gerundismo que tomou conta do mundo como uma praga) me fascina, é como se estivéssemos sempre agindo, é como se fôssemos eternos, e o pretérito e o futuro estivessem longe de colocarem suas garras – é, garras ficou muito vulgar e chavão, mas somos todos um pouco vulgares, e o que somos além de chavões humanos – vai garra mesmo. Isso, longe de colocarem suas garras ( só não vou dizer afiadas, isso já é apelação) na carne de que somos feitos.

Levantando. Muito bem, deste ponto pretendo ser mais sério, e me arriscar pelos caminhos sinuosos – e caudalosos – de um psicologismo barato. Tão caro pra mim.

[Intenso silêncio, um leve coçar de saco, tentativas infrutíferas de encontrar uma citação fascinante, mais uma coçada no saco... um estalar de dedos, uma total falta do que dizer, um cérebro oco, vazio. Muito vazio mesmo!]

É, Levantando...

Da cadeira, da idéia, do texto... levantando.











quinta-feira, 10 de junho de 2004

Haiti

HAITI


Ronie Von Rosa Martins





O movimento estava nos olhos. E no dedo. O dedo da mão direita. E o mundo era sobre ele. Com o peso todo. E os olhos vivos. Procurando, buscando. E o cérebro.

Pequeno. Correndo nas ruas. Os amigos juntos. Muita alegria e gritos. Uma bola toda enrolada, chutes para todo o lado. Brincadeiras... Mas agora não dava. Muito peso. E sufocava.

Quando corria muito sentia dor no peito. Tinha que parar, respirar. Mas agora tava difícil. O buraco era pequeno.

Tentava sorrir. Lembrava do gol. Do prazer do chute. Do movimento dos músculos da perna. O retesar, a explosão de força e vigor. Golaço. Bola no ângulo, goleiro estendido. Braços em movimento livre pra cima e para baixo. O grito de gol eclodindo... mas agora não havia gol.

O pescoço doía. Não sentia as pernas. Só os olhos estavam livres. Soltos. Podiam dentro do raio de visão que a cabeça permitia; observar tudo. E nada podiam fazer.

Tentava afastar a lembrança dos rostos. Defesa. Sobrevivência.

Tinha que ser mais forte. Sempre mais forte. Viver. Era isso que tinha que pensar. Mas doía muito.

E os outros? Ouvia rumores. Os ouvidos abalados. Mas ainda ouvia os sons da superfície. Gritara bastante. Ninguém ouvira. Será que morrer era assim?

A luz vinha de um espaço que se abria minúsculo perto do seu pé. Quando fazia sol um facho de luz forte e vibrante incendiava o escuro túmulo onde se encontrava.

E sorria. Nervoso. Fome. Tinha muito. A barriga roncava incessante. Mas era a sede que o enlouquecia. Os lábios secos já começavam a se partir. Rachar. Doíam... e sangravam. E ele bebia o próprio sangue. Um devorar-se aos pouquinhos.

Pensava que era extremamente doloroso estar ciente do próprio definhar do corpo. Queria desmaiar. Fechar os olhos. Mas ai vinha a fúria de viver. Tinha que viver! Tinha. Devia. Resistir ao peso. Resistir.

A vida inteira havia resistido.

O corpo ossudo e magro parecia ser feito de ferro. Agüentara privações que só quem já abraçara a miséria absoluta sabiam. E não havia conforto. Não havia lembranças boas para se agarrar. Pessoas para voltar. Havia um corpo de ferro que se recusava morrer. Só. E mesmo a vida sendo uma merda, era a vida do corpo. A vida que lhe fora dada. E era dele. E era ele que diria que decidiria a hora. E o rato o olhou de longe. Cheirou. E os olhos dele se fecharam. Seria agora. Sentiu no corpo o movimento do animal, unhas afiadas. Abriu a boca. A armadilha. E ele veio. E a boca seca e enorme abocanhou. Dentes de raiva e fome. E mastigou. E bebeu o sangue. E engoliu carne, pele, mastigou osso. Com o desespero e o terror do inferno. E depois da morte sorriu. Cuspindo pelo e bolas de carne e tripas.

Já não sabia quanto tempo. O tempo parecia uma piada. A luz sim era determinante. E quando o pequeno facho se apagava, mergulhava profundamente em um não-ver absoluto.

Foi em um destes escuros que sentir o movimento dolorido da mão. Ela voltava de um torpor antigo. Os dedos mexiam. O braço. O braço estava vivo também. Levantou a mão com esforço até perto dos olhos. Nunca percebera a importância da mão. Uma lágrima escorreu. Ainda não chorara. O sal deslizou de leve por seus olhos. Passou a mão nas lágrimas e lambeu os dedos.

E então os ouviu. Conversas. Palavras estranhas. Passos. Gritos. E o mundo começou a tremer. E terra caiu-lhe no rosto. Cuspiu. E gritou. Grito de raiva. De força. Grito de desespero e ferro. Grito de quem não morre. Berro de corpo que suporta o peso. Uivo da carne que resiste á pedra e ao cimento.

E enquanto era retirado dos escombros gritava. Mas não havia dor. Havia força, havia poder!



sábado, 20 de março de 2010

Ladrão


LADRÃO

Ronie Von Martins





Tinha que fazer. Seria fácil. Pensou na mulher. Na alegria da mulher quando voltasse com uma bolsa nova. Uma bolsa era tudo a mulher queria. “Todas têm bolsa bonita, só eu que não. Só eu que não...” isso martelava na cabeça dele. Foi então que aceitou. Tinha recusado. Sempre recusara. O primo vinha com aquela conversinha de que tudo era fácil, muito dinheiro e essas coisas. E ele recusava. Medo? Sim, era medo. Mas quem não tinha medo. O medo é que nos tinha. A todos. Amarrava todos pelos pés, e quando queria divertir-se, nos puxava para o inferno. Era assim que ele estava se sentindo. Como se alguém o estivesse puxando para o inferno. E o inferno era a casa.



Forçou o cérebro para perceber o ato como algo mecânico, matemático. Pularia a janela, o primo trabalhava na casa. Deixaria destrancada. Era só entrar. A velha estaria dormindo. Ela dormia cedo. A velha.



Dizia o primo que era uma mulher muito chata e doente. Mulher má – dizia o primo – enrugada como uma bruxa. Merecia ser assaltada. E se morresse de susto não tinha problema. Já era velha e ninguém ia dar falta.

O primo não gostava da velha. Ninguém gostava da velha. Nem o mundo.



A rua estava escura. O primo mandara... Pagara alguns moleques para quebrar as lâmpadas dos postes próximos. De bodoque na mão, a gurizada fuzilou as lâmpadas, a escuridão caiu sobre a rua.



Queria estar em casa, olhando o Fantástico, comendo pipoca e tomando um mate. “Meu Deus, o que é isso, o que eu estou fazendo?” pensava. Chamou o grande pastor que cuidava do pátio pelo nome. “Leão. Leão!” eram velhos conhecidos. O primo, jardineiro da velha, levava o cão para passear. Levava-o para a casa dele. Ele dava comida, fazia carinho. Eram amigos. O cão gostava mais dele do que da velha. Os dentes do Leão eram navalhas. Mas jamais o morderia. Veio fazendo festa, lambeu o rosto dele, balançou o rabo. “Amigo, amigo...” ele falava. O coração forte a esmurrar as paredes do peito.



“Vai, vai sim.” Disse a mulher. “Chega de viver como escravo. Olha pro teu primo, aquele sim sabe viver. Sempre com dinheiro no bolso, carrão e dando vida boa pra mulher dele.” Ele tentava argumentar... Mas não saia do “Mas querida... mas...” e ela já o enchia de gritos e desaforos. “Palerma, frouxo, covarde.” Ela era bonita, jovem. Ele era feio e velho. Quarenta e oito anos como servente de pedreiro acabava com qualquer um.



Enquanto vomitava no banheiro, olhou-se ao espelho e entristeceu. Acabado. A imagem era do fracasso. Do seu fracasso. Não tinha filho. Não tinha mais ninguém, só ela, Hilda. Mulher fogosa e brincalhona, mas muito geniosa. Ainda lembrava dela no casamento. Ele prometendo vida nova. Ia ser pedreiro, ia construir uma casa linda. Tinha muitos fregueses, ia contratar ajudante... ela ia ver só, ia ver só...



O tempo passou e nada mudou. Continuou como servente. Pobre e triste. Mais triste do que pobre. A bolsa era o símbolo, o signo de tudo que a mulher queria que ele prometera e não cumprira. Quando brigavam – coisa freqüente – ela zombava: “E a minha bolsa nova?”



Trouxera alguma comida para o cachorro, sabia que ele só comia ração, adorava carne. Trouxera restos de carne do açougue. Jogou em um canto e o cão desapareceu. Escalou a parede, empurrou a janela e entrou na casa. O coração nunca batera tão forte. Chegava a doer no peito. Quase pensou que ia morrer ali. Acendeu uma pequena lanterna. Era uma sombra. Quase não fazia barulho. Mas ouvia todo o som que seu organismo angustiado fazia dentro da barriga. Pensou no primo. O que estaria fazendo?



Levantou-se do corpo nu da mulher. Tudo escuro. Não gostava de ver nada. O primo estava fazendo o que tinha que fazer. Era bobo. Mas era um bom sujeito. “É, um bom sujeito.” Pensava nisso quando as mãos de Hilda o puxaram para dentro do seu corpo novamente. Foi nesse instante. Que o facho da lanterna atingiu o rosto branco e assustado da velha. Mãos tremendo, lágrimas no rosto. Enorme revólver nas mãos. Um estampido. Um latido de cão, um orgasmo e o mundo voltavam ao seu louco girar.

A laranja




A LARANJA
Ronie Von Martins



Muito alta. E na parte mais alta. Zombando de sua impossibilidade, ela. Grande e vistosa. Redonda. A laranja.
Rosto voltado para cima maquinava em seu pequeno cérebro artimanhas fantásticas para apanhar a grande laranja. Outras menores e sem graça estavam ao seu dispor. Mas a grande. Ela. Estava longe. Distante de seus sete anos de idade.
E o pior de tudo é que era um homenzinho como a sua mãe dizia. Não devia pedir ajuda. Aquilo era uma questão de honra. Era entre eles. A laranja e ele. Mas era alto. Isso podia ver. Do alto ela continuava zombando.
Pedra. Sim. Colocaria à baixo todo o orgulho daquela laranja à pedradas. Agora ela sentiria o poder do seu braço. Agachou-se no chão e apanhou uma pedra. Precisaria de mais – pensou – e ao pé da laranjeira amontoou um pequeno número de pedras de todos os tamanhos e formas.
Da janela de casa a mãe observando as “funções” do filho resolveu aproximar-se para ver o que acontecia e perguntou-lhe o que fazia. Apanhado de surpresa e não querendo se “entregar” e pedir a ajuda da mãe respondeu que estava fazendo uma montanha de pedras para carregar com o carrinho de plástico. O olhar do menino misto de mentira e ingenuidade era algo digno do sorriso que se fez no rosto materno. “Tudo bem meu filho, mas não vai te machucar... qualquer coisa a mãe ta lá dentro.” E com passos lentos e ainda com uma rápida olhada para o filho a mãe voltou-se para os seus afazeres.

Levantou-se do chão onde estava sentado juntando as pedras e o pânico tomou conta. Quase chorou, quase chamou definitivamente a mãe. Mas segurou. Resistiu firmemente, “era um homenzinho...” aos seus pés jazia uma laranja, enorme furo, morta, seca. Um grande pássaro estava próximo de sua laranja. Ia furá-la, estragar a fruta, vence-lo. Frustra-lo para o resto da vida. Ficaria traumatizado. Ouvira seu pai dizendo esta palavra quando olhavam televisão, achou bonita, perguntou ao pai o que significava... o pai respondeu alguma coisa que ele não entendeu bem... sabia que tinha a ver com tirar algo de alguém, fazer alguém sofrer... por aí. Se o pássaro comesse sua fruta, estaria marcado pro resto da vida, seria um terrível “traumatizado”. Foi então que em desespero começou a tocar pedra na árvore. O pequeno corpo no esforço de jogar pedras nas alturas.

Na cabeça. A pedra elevou-se, parecia ir longe, mas de repente, sem mais impulso, força ou vontade parou. Ele observou. A pedra morreu no ar. Os olhos do guri se arregalaram, e ela voltou. Certeira, veloz, pesada, “pum”. Na testa. O guri caiu, tentou segurar o choro, levantou-se, o corpo tremendo de vergonha, raiva e dor, os braços frenéticos no ar, as pernas saltitando e fazendo o pequeno corpo dar pinotes engraçados. Gritou. Chorou. A mãe e o pai correram. Não parava de chorar. A mãe perguntava o que acontecera, o pai com o filho no colo tentava encontrar alguma coisa errada, um arranhão, um machucado. Ainda aos gritos o menino percebeu no céu o pássaro que estava na árvore. Assustada a ave resolvera fugir. Olhou para o lugar onde a laranja se encontrava, lá estava ela. Parou de chorar e pediu pra sair do colo do pai. Disse que estava bem, que fora só um susto...o pai desconfiado olhou pelo terreno, procurando algum bicho, inseto, mas não encontrou nada. “Não quer olhar TV meu filho?” Não, o guri não queria, e os pais por fim resolveram voltar para dentro de casa. Aliviado e enfurecido, o “galo” na cabeça incomodando, o pequeno homem apanhou um pedra grande e atirou contra a árvore. Errou. E sobre o muro a pedra passou. A criança ouviu quando uma vidraça se espatifou. Do outro lado uma voz de homem gritou uma palavra que ele tinha lido na escolinha, na porta do banheiro, mas que não sabia o que significava. Mas pelo jeito que o homem falara não devia ser coisa boa. O coração parecia que ia sair da boca e um medo pesado e opressivo tomou-lhe o corpo e a mente. Seria preso. A polícia viria pegar-lhe. O resto da vida na cadeia. Como os filmes que via na noite quando o pai dormia e ele voltava a ligar a TV do quarto. Tinha que fugir. Tinha que fugir! Correu pra dentro de casa, apanhou a pasta do colégio, tirou os cadernos, enfiou o urso de pelúcia, apanhou a espada do He-man, precisava de proteção. Juntou um saco de biscoitos no armário, uma garrafinha de água na geladeira e ganhou a rua. Correu para a porta exatamente no momento em que o vizinho apertara a campainha. Tinha que ser agora. Deveria ser rápido, frio e calculista. Esperou o pai aproximar-se, no exato momento em que a porta abriu-se ganhou a rua. Uma golfada de ar gelado, uma sensação estranha invadiu seu corpo. Agora estava sozinho. Ele e o mundo. Não tinha casa, pai, mãe, amigos. Só o mundo e os perigos das aventuras que surgiriam. Correu para as esquina, o lugar mais longe que fora até agora. Faria seu lar ali. Sim. Aquela esquina seria seu novo lar. Faria uma cabana, encontraria um cachorro como amigo e começaria uma vida nova.

Sentou-se em uma calçada e pensava na vida quando o Jovenal, o dono do armazém chamou-lhe. “Brincando seu Veriatinho?” O menino aproximou-se, peito estufado, olhar severo e forte. Agora era um homem enfrentado o mundo. “Fugi de casa, agora estou morando sozinho.” Os olhos do Jovenal, homem gordo e simpático sorriram. “Então o jovenzinho resolveu abandonar a família?” O menino apenas fez que sim com a cabeça. “E onde vais morar?” “Aqui.” respondeu o menino. “Vou fazer minha casa nessa esquina.” O Jovenal entrou para o armazém e voltou com uma grande caixa de papelão. “Toma então, tenho uma bela casa aqui.” Os olhos do menino se iluminaram. Escorou a grande caixa de papelão ao lado do armazém e entrou. Uma sensação de conforto invadiu-lhe o corpo. Agora estava protegido, dentro da sua própria casa. Pegou a espada do He-man, abraçou-se ao urso e “enroscou-se como um cachorrinho para dormir”. As aventuras se sucediam uma atrás da outra. Dragões, feiticeira, índios, monstros, todos eles eram derrotados pela sua grande espada encantada. Lugares estranhos e nunca vistos eram desbravados, por onde andasse as pessoas o cumprimentavam, pediam sua ajuda. Sem dúvida tornara-se um grande herói.

Acordou ouvindo a conversa do pai e da mãe. “Esse guri...” foi o que mais ouvia das conversas. Olhou assustado para os lados, estava no quarto, o seu quarto. A caixa de papelão do seu Jovenal ao lado da cama. “Pois é...” era a voz do Jovenal “ O rapazinho deitou na caixa e dormiu como uma pedra.”
Estava novamente em casa. o que aconteceria? E a polícia?

A mãe entrou no quarto, afagou-lhe os cabelos. Isso era bom. Muito bom. Algumas palavras. Muitos sorrisos. E a noite veio. O sono e o sonho.

No outro dia jogava bola no pátio. Era um grande jogador de futebol, a árvore era o adversário, ridículo, pesado, e ele driblava o oponente do jeito que entendia, era um craque do futebol. Correu, driblou, cansou. Sentou-se satisfeito, o jogo havia acabado trinta e nove a zero para ele. A árvore não havia feito nenhum gol. Sentou-se no chão. Ofegante. Um silêncio enorme invadiu a manhã. “Pum” a laranja despencou na sua cabeça. Meio tonto e enfurecido, sem perceber o que fazia, apanhou a laranja e lançou-a sobre o muro. Arregalou os olhos. Uma careta. Esperou o berro que escalou o muro e saltou aos ventos:
- Mas que merda!!


Arte: Anieli Rosa Martins